Na quietude histórica da Praça Bispo Dom José, em meio às transformações que o tempo insiste em impor, repousa a memória líquida de Cuiabá: o Chafariz do Mundéu. Monumento de pedra e água, moldado pela mão humana e burilado pela persistência do tempo, esse chafariz não é apenas uma estrutura de alvenaria – é um relicário da alma cuiabana.
Sua história começa em 28 de novembro de 1871, sob a orientação do Comendador Henrique José Vieira, Joaquim Felicíssimo de Almeida Louzada, o capitão de Mar e Guerra Antônio Cláudio Soído e o vereador Joaquim Alves Ferreira, durante o governo do presidente da província Francisco José Cardoso Júnior. Foi ele quem autorizou a construção de um reservatório no chamado Quintal do Maranhão, de onde partia um aqueduto que alimentava o novo chafariz no Largo da Conceição – hoje Praça Bispo Dom José.
A edificação, projetada em sólida alvenaria, ostentava um corpo octogonal de base circular, com vértice rematado em cone reto. Suas bicas, emolduradas por colunatas ornamentais, lançavam filetes de água fresca captados nas fontes do extenso quintal do Maranhão. Não por acaso, ali se formou um pequeno oásis urbano.

Chafariz se tornou ponto de encontro dos escravizados
O nome “Mundéu” nasceu do murmúrio popular. Talvez venha de antigas palavras de origem africana ou indígena, ou apenas de um apelido cuiabano que, como tantos outros, se impôs pela força da oralidade. O que se sabe é que o chafariz se tornou ponto de encontro dos escravizados, que, ainda na penumbra da madrugada, ali enchiam latas e potes. Enquanto a água escorria, escorriam também desabafos, lamentos e risos contidos. Era lugar de trabalho, mas também de resistência silenciosa.
Com a inauguração do sistema de abastecimento hidráulico em 1910, o Chafariz do Mundéu foi desativado. Passou a ser considerado um estorvo, um objeto fora do tempo – inútil, como tantas outras relíquias tratadas pelo progresso com indiferença. Mas resistiu. Sobreviveu ao esquecimento, às reformas e ao asfalto das ruas que em 1972 passaram a cercar a praça.
Foi tombado como patrimônio estadual em 27 de dezembro de 1979, pela Portaria nº 032/79 da Fundação Cultural de Mato Grosso. Um ato que reconheceu sua importância não apenas como obra de engenharia, mas como testemunha da vida urbana, das políticas públicas de abastecimento e das histórias humanas que ali se derramaram.
Dom Aquino Corrêa, quando governador, promoveu uma reforma que o trouxe de volta à dignidade. Em 1959, mais uma intervenção buscou preservar sua forma. Mas é no imaginário popular que o chafariz continua mais vivo – nos relatos dos mais velhos, nas crônicas dos estudiosos, nas caminhadas dos curiosos que ainda param diante da estrutura para tentar ouvir o eco da água que já não corre.
Os autores Pedro Rocha Jucá, Rubens de Mendonça, Firmo Rodrigues e Francisco Alexandre Ferreira Mendes, ao registrarem com zelo a trajetória do chafariz, não escreveram apenas sobre um monumento. Escreveram sobre um ponto de partida. Sim, porque foi com a construção do Chafariz do Mundéu que começou a ocupação do entorno da atual Avenida Dom Aquino. Pequenas casas foram se espalhando, tímidas, mas firmes, como se buscassem a proteção da fonte.
Nos anos de 1880, ali estava o coração pulsante de uma Cuiabá que começava a se expandir – não com pressa, mas com propósito. O chafariz, mesmo seco, ainda transborda significados. É memória que não se apaga. É pedra que ainda fala. É arte pública que insiste em permanecer.
E quem passa por ali, sem saber, pisa sobre histórias molhadas de suor, sonhos e saudade.

*Francisco das Chagas Rocha é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT). Acesse Cuiabá de Antigamente
Fontes: Pedro Rocha Jucá, Rubens de Mendonça, Firmo Rodrigues e Francisco Alexandre Ferreira Mendes.